quinta-feira, 30 de outubro de 2014

NOTICIAS BEATLES - O que é que o mono tem? O reencontro com os Beatles, como queriam que os ouvíssemos.

The Beatles In Mono reúne a discografia em vinil mono, o formato predominante da década de 1960 e que os Beatles privilegiavam.
Beatles 166
The Beatles in Mono, a caixa agora editadaDR
The Beatles in Mono, a caixa agora editadaDR
Em 1934 Alan Blumlein, produtor da BBC, convocou os seus superiores. Queria fazer uma demonstração. Nela, ouvir-se-ia algo inédito, sons gravados em movimento no espaço, ou seja, em estereofonia. Infelizmente para Blumlein a gravação da London Philarmonic Orchestra interpretando a Sinfonia nº41 de Mozart não causou o efeito desejado. Os executivos deram-lhe uma palmadinha nas costas e encaminharam-no para outro projecto que lhes parecia promissor, uma caixa de imagens chamada televisão.

O estéreo não era novo. Cinquenta anos antes, em Paris, fora apresentado o “teatrofone”, que permitia ouvir em casa a ópera da cidade, através de uma ligação telefónica – e podemos imaginar Marcel Proust, um dos subscritores, com dois auscultadores encostados aos ouvidos a apreciar o som da nova tecnologia. Muito faltaria ainda, porém para que o estéreo se massificasse.

Alan Blumlein, que morreria num voo de teste durante a II Guerra Mundial, em 1942, nunca chegaria a ver a sua tecnologia aplicada comercialmente. As primeiras edições discográficas em estéreo surgiriam em 1958 e só se massificariam na década de 1970. Entre um momento e outro, uma banda saiu de Liverpool, estagiou em Hamburgo, mudou-se para Londres, invadiu os Estados Unidos e conquistou o mundo. Chamavam-se The Beatles. Vamos ouvi-los novamente. Vamos ouvi-los com outros ouvidos.

The Beatles In Mono reúne todos os discos de vinil da banda misturados em mono (ou seja, com todo o som processado por um canal apenas), acrescidos da colecção de singles Past Masters (de fora ficam apenas, portanto, Yellow Submarine, Abbey Road e Let it Be, exclusivos em estéreo). Foram misturados a partir das fitas originais e cortados para vinil recorrendo às instruções e tecnologia utilizada originalmente. Em termos de arte gráfica são, igualmente, trabalho perfeccionista: da prensagem das capas à reprodução dos textos de apresentação na contracapa e ao tipo de papel nela utilizado, temos em mãos reproduções perfeitas dos álbuns ingleses da década de 1960 (disponíveis também individualmente). Edições deslumbrantes, de som imaculado. Mas depois da reedição integral e remasterizada da discografia em 2009, depois do lançamento em 2012 dessa mesma obra em vinil estéreo e depois do lançamento das edições americanas, que importância terá The Beatles In Mono?

“Discutir a questão mono versus estéreo hoje em dia parece-me um bocado estranho”, concede Hélder Gonçalves, guitarrista e compositor dos Clã. “O estéreo já se impôs e a coisa mais próxima dessa divisão nos tempos modernos é a luta entre o estéreo e o sistema 5.1.” Para Edgar Raposo, da Groovie Records, editora especializada no rock’n’roll de hoje e em reedições do rock e garage das décadas de 1960 (europeu, sul-americano, asiático), conjuga-se o apelo da nostalgia, “o trazer o passado de novo à ribalta”, com um intuito comercial óbvio. “Falamos das edições originais dos Beatles, que são muito difíceis de encontrar e muito caras. Os coleccionadores sem dinheiro para as adquirir vão dar-se por contentes por ter uma reedição destas”. Bruno Pernadas, músico dos Julie & The Carjackers e autor, a solo, de How Can You Be Joyful In a World Full of Knowledge, álbum de destaque no ano discográfico português, também fala de nostalgia. Ou melhor, de “memória geracional”. Os seus pais têm edições originais dos Beatles, em mono, e foi com elas que Pernadas cresceu. “Ganhamos intuitivamente a memória de um som. Goste-se ou não, é ele que fica na memória”.

Quando falamos dos Beatles em mono falamos, portanto, de nostalgia, de memória afectiva. Afinal, o mono é coisa do passado, tecnologia ultrapassada, dir-se-á, e pregar a sua superioridade equivale a defender que o cinema mudo é notoriamente superior ao sonoro. Digamos que a importância de The Beatles In Mono é, acima de tudo, uma questão de fidelidade. Não é o mesmo ouvir With The Beatles, Hard Day’s Night, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band ou The Beatles (o álbum imortalizado como White Album) nas suas versões mono ou estéreo. E os Fab Four sempre defenderam que era o mono que correspondia fielmente aos seus desejos criativos. Os Beatles eram banda revolucionária, banda experimentalista em estúdio, arautos de um novo mundo. Conservadores, porém, naquela questão.

Que raio era essa modernice do estéreo? Não era verdade que a esmagadora maioria das casas tinham aparelhagens de uma coluna apenas, mono portanto, e que era esse o formato privilegiado, por mais barato, pela juventude que comprava aos magotes a nova música pop? Não era certo que os técnicos de som e produtores se tinham tornado verdadeiros mestres no formato, criando nele poderosíssima arquitectura sónica? Para que precisaríamos de duas colunas, dividindo o som, enfraquecendo-o, submetendo a qualidade musical ao novo-riquismo de uma tecnologia a que apenas uns poucos privilegiados podiam aceder? Era o que pensava George Martin, era o que pensava Brian Wilson, dos Beach Boys (ajudava o facto de ser surdo de um ouvido e, portanto, não poder produzir em estéreo), era o que defendia o lendário produtor Phil Spector, inventor do “Wall of Sound” e que, não por acaso, deu ao título da antologia da sua obra, editada em 1991, Back to Mono. E era o que afirmava, já em pleno reinado estéreo, John Lennon. Numa entrevista de 1974 citada no livro generoso em fotos e texto incluído em The Beatles In Mono, queixava-se do que haviam feito a Revolution, single de 1968. “A versão rápida foi destruída. Era uma gravação pesada, mas a mistura estéreo transformou-a num docinho”.
Fonte: Público – Via e-mail.
Por Marina Sanches - @sancmarina.

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